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ENTRE SUPERAÇÕES E DESAFIOS, SAÚDE MENTAL NO PARÁ AINDA É ASSUNTO TABU

Matéria publicada originalmente no jornal Diário do Pará em setembro de 2012.
(Foto: produção de pacientes de um Caps de Belém, por Tiago Júlio)

“De médico e louco, todo mundo tem um pouco”. A frase circula por aí há tanto tempo que já foi incorporada pelo senso comum e virou ditado popular. Ela faz parte do livro“O Médico e o Monstro”, ficção-científica escrita pelo escocês Robert Louis Stevenson publicada em 1886. Tanto no contexto da história quanto no cotidiano, a expressão é utilizada para afirmar que, no fundo, ninguém é totalmente“normal”. A ideia velha não justifica o porquê, ainda hoje, pacientes com transtornos mentais sofrem preconceito e discriminação, não raro, dos próprios familiares. No próximo dia 10 (quarta-feira) é comemorado o Dia Mundial da Saúde Mental, a campanha antimanicomial será um dos destaques. Dos antigos hospícios e manicomios, quase extintos no Brasil, sobraram a desinformação e o estigma. No entanto, os novos tratamentos públicos, ainda pouco divulgados, apontam o caminho. E se “de perto ninguém é normal”, bons exemplos mostram que com o apoio da família é possível levar uma vida que, de longe, não parece diferente da minha ou da sua. No próximo dia 10 (quarta-feira) é comemorado o Dia Mundial da Saúde Mental.


No Hospital de Clínicas Gaspar Vianna, o HC, localizado em Belém, pacientes em crise vindos de todo o Estado são socorridos. A unidade dispõe de 30 leitos para emergência, 30 para internação e outros dez em uma clínica conveniada. É o único hospital do Pará que oferece estrutura e uma equipe preparada para atender as situações de emergência envolvendo transtornos mentais. O HC não é um hospício. Lá, os pacientes podem ficar até 72 horas em observação. Em caso de internação, o tempo médio é de 25 dias. No entanto, com certa frequência, pessoas ocupam leitos da unidade por mais semanas que o necessário. O motivo? As famílias abandonam seus parentes.


W.S, 70 anos, está no HC há cinco meses. Ele foi trazido à unidade pelo atual companheiro de sua ex-mulher, penalizado com sua situação. Vítima das consequências do alcoolismo, é difícil encontrar nos olhos vagos de W.S resquícios do homem que ele foi um dia. Nas pernas, marcas das cicatrizes que ganhou perambulando perdido pelas ruas. W.S, que quase não fala, tem quatro filhos. Nenhum deles quer cuidar do pai. O HC precisou entrar com ação no Ministério Público por abandono de incapaz para tentar fazer com que o paciente recupere o direito de ter um lar.


“Se o estado do paciente for estável, se ele não apresentar sinais de agressividade, ele tem plenas condições de viver com a família e se tratar lá fora. Isso é muito importante para a sua melhora. Na grande maioria dos casos, a doença é controlada e ele pode se reintegrar à sociedade”, explica Andréia Bezerra, assistente social e chefe do serviço biopsicossocial do HC.


A equipe multidisciplinar do hospital, formada por profissionais de saúde de diversas áreas, realiza trabalhos de acompanhamento e conscientização com a família dos pacientes. Ainda assim, há casos em que familiares deixam de dar a medicação de propósito aos doentes apenas para que eles entrem em crise e sejam novamente internados. Em outras situações, mais dramáticas, os pacientes que recebem alta não têm para onde voltar porque a família tenta fugir do “problema” mudando de endereço.


O HC faz uma constante busca-ativa para reencontrar famílias que desamparam seus pacientes. Serviço que também é utilizado nos casos em que os portadores de transtornos mentais têm procedência desconhecida. Caso de uma senhora que diz se chamar Izabel Cleópatra, 51 anos. Ela foi encontrada tentando embarcar para Manaus, sem documentos, a cerca de cinco meses. Izabel não está mais em crise, mas não sabe exatamente para onde ir, nem quem procurar. Em sua fala, teorias conspiratórias se misturam com lembranças de passagens pelo Rio de Janeiro e São Paulo. Cleópatra justifica o sorriso bonito afirmando que tem dentes de ouro branco com diamantes. “Meu sonho é reencontrar meus filhos”, desabafa.


O HC não é abrigo para doentes sem-teto. Mas, enquanto governos e prefeituras não assumem a questão, os profissionais fazem o que podem para preservar a dignidade de quem chega oferecendo risco aos outros e a si mesmo. Problemas que poderiam ser evitados, caso os transtornos mentaisfossem assumidos e reconhecidos antes de se tornarem críticos. “Se a pessoa demonstrar qualquer sinal de problemamental, a família deve logo procurar um CAPs. Não é certo esperar que o paciente entre em surto, fique agressivo, para trazê-lo pra cá. Nós não somos depósito de gente”, fala Andréia Bezerra.




CAPS




Os CAPs (Centros de Atendimento Psicossocial) são unidades públicas, ainda pouco conhecidas, que estão abertas a todos que achem necessário buscar ajuda para manter seu equilíbrio mental.“Nós implantamos serviços substitutivos que condizem com o desmonte do modelo manicomial e oferecemos esse novo apoio. O grande foco é a formação de uma equipe multidisciplinar para a construção de um modelo terapêutico singular. Todos os usuários têm direito de serem especiais e terem um olhar diferenciado e singular sobre seus problemas”, explica a coordenadora Estadual da Saúde Mental em exercício, Marilda Fernandes.


Nos CAPs, além de acompanhamento psicossocial, o cidadão pode ter acesso a atividades que envolvem oficinas de trabalhos manuais, de auto-reflexão e valorização pessoal. Segundo a coordenadora de Saúde Mental, existem atualmente 66 CAPs, entre habilitados e não-habilitados, distribuídos em todo Estado. De acordo com proporção atribuída pelo Ministério da Saúde, o ideal é um CAPs para cada 100 mil habitantes. O último Censo, de 2010, revelou que o Pará tem cerca de sete milhões e seiscentos mil habitantes. “Municípios com menos de 20 mil habitantes não precisam ter CAPs. Considerando a realidade nacional, nós temos uma cobertura boa. É evidente que ainda precisamos evoluir bastante, ainda tem muito a ser feito, mas nossa rede ainda está sendo construída”, explica Marilda Fernandes.


Para a coordenadora, o preconceito e a desinformação ainda são o principal entrave na hora da busca pelo tratamento. “A sociedade tende a repudiar tudo que foge dos padrões. A saúde mental não está ligada necessariamente à ausência ou presença de transtorno, mas sim ao bem estarmental. Grandes tristezas podem virar depressão, por exemplo. O transtorno mental está muito mais próximo do que a gente imagina”, esclarece.


J.S, 34 anos, descobriu em 97, quando ainda morava em Macapá, que tinha um grave problema mental. “Eu fiquei três dias vagando pelas ruas. Entrava em taxi sem ter dinheiro pra pagar, pegava ônibus transtornado, ficava sem dormir. Na verdade, eu não lembrava que tinha que voltar casa”, conta rindo. A última crise grave aconteceu há sete anos. O bom humor parece ser a melhor forma de encarar um passado cada vez mais distante. “Eu não conhecia o problema e não sabia o que tava acontecendo. Foi muito difícil mesmo. Eu comecei a pedir pra Deus que onde ele estivesse que, por favor, voltasse. Depois que a gente descobriu o problema, cheguei a ficar 13 dias sem comer. Eu e meu marido sofremos muito”, conta dona Dolores, 58 anos, mãe de J.S.


Diagnosticado com transtorno bipolar, J.S há três anos faz acompanhamento uma vez por semana em um dos CAPs localizados na capital paraense. Leitor de clássicos de José de Alencar, Shakeaspere e Molière (autor de um de seus favoritos: “O Doente Imaginário”), J.S descobriu nas oficinas de leitura dramática do centro que leva jeito para fazer poesia. “É a forma que eu encontro de expressar meu olhar sobre as coisas, o que eu tô sentindo e me comunicar com o mundo. Eu gosto bastante. Também participo do grupo de teatro”, conta o poeta, que está esperando apoio para publicar o primeiro livro.


J.S resume em uma palavra o que sente pelos pais, que aceitaram o problema e o ajudaram a enfrenta-lo: “Gratidão”. Segurando com carinho a mão do filho, dona Dolores completa: “O tratamento que ele recebe é muito importante. Eu espero que o governo dê mais atenção a jovens que passam pela mesma situação. Ninguém adoece porque quer. Todos nós queremos viver bem. Problemas todos nós temos, mas eu acho que o problema de saúde é pior porque ele te impede de resolver os outros”.




AMPARO


O último Hospital Psiquiátrico do Estado, o Juliano Moreira, foi extinto em 1984. Os internos de lá passaram a morar no Centro Integrado de Assistência Social (Ciaspa). São pacientes dependentes, que perderam vínculo familiar, e aos poucos começam a ser deslocados para residências terapêuticas. A primeira delas, iniciativa pioneira em toda a região Norte, só foi inaugurada há dois anos. Nela, vivem atualmente oito pacientes.


A casa localizada no bairro da Marambaia em nada lembra um hospício ou internato. Os pacientes realizam trabalho doméstico, podem sair para passear na pracinha, ganham renda através do artesanato que produzem e são queridos pelos vizinhos, que vez ou outra os convidam para aniversários ou churrascos. Os residentes têm acompanhamento 24 horas.


A chefa da turma é uma santa francesa, Joana D'arc. A senhora simpática de 67 anos não consegue mais falar, no entanto, tem energia de sobra para gesticular bastante. Ela toma conta dos outros moradores e mostra orgulhosa as colchas coloridas que fabrica. Chique, dona Joana usa o dinheiro da venda para comprar perfumes de marca.


Outras duas residências, nos mesmos moldes, estão pactuadas e devem ser inauguradas pelo governo do Estado. Para Maria Regina de Souza, coordenadora da 1ªResidencial Terapêutica, seu trabalho é muito mais que uma simples obrigação. “Ver eles sendo reintegrados à comunidade, sendo aceitos e queridos é uma satisfação muito grande. Eu não consigo separar a vida profissional da vida pessoal. O amor que eu sinto por essas pessoas vai além”, conta. Basta meia hora conversando com os moradores para entender o carinho de Regina. Sentindo o afeto e a solidariedade dos residentes, a impressão que fica é de que o mundo seria melhor se muitas das pessoas consideradas sãs se permitissem ser um pouco mais loucas.

Saúde Mental: Sobre mim
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