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RAIMUNDO NONATO: O ÚLTIMO HOMEM

Reportagem publicada inicialmente no jornal Diário do Pará em junho de 2013.
(Foto: acervo histórico do Exército Brasileiro)

“Quando ele levantou a bala da bazuca, o sargento gritou desesperado pra ele soltar aquilo. Quando caiu, o disparador acionou e a bala explodiu imediatamente. Parte do crânio do soldado saiu, o intestino do outro ficou de fora. Foi a coisa mais chocante que eu já vi. Todos corremos para ajudar”. A bala na mão do soldado deveria explodir em um tanque alemão desativo durante um exercício militar. Fora os dois mortos, 16 ficaram feridos. O acidente ocorreu há 68 anos, na Itália. É de histórias fantásticas como essa, contada por seu Raimundo Nonato, 90 anos, que o documentário “Por Terra, Céu & Mar” é composto. 


O filme foi lançado extraoficialmente, no último de oito de maio, na Associação dos Ex-Combatentes de Guerra do Brasil Secção Pará. Entre memórias e anseios, sobram relatos incríveis dos “pracinhas” paraenses que viveram na Itália os horrores da Segunda Guerra Mundial. À frente do curta-metragem de 28 minutos estão os professores Hilton Silva e Elton Souza, do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH), por meio do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal do Pará (PPGA/UFPa).


O interesse de realizar a pesquisa surgiu de uma reportagem publicada no DIÁRIO em 2009. Naquele ano, os ex-combatentes anunciaram que não iriam participar do tradicional desfile de sete de setembro por conta da idade avançada. Como ambos os professores também têm formação na área da saúde, o desejo de investigar o caso surgiu naturalmente. “Quando nós começamos a fazer o trabalho de pesquisa e ir atrás das histórias, nos preocupando em ouvi-los, eles se sentiram novamente valorizados. No ano seguinte, voltaram a desfilar”, conta o professor Hilton.


Entre 1944 e 1945, cerca de 25 mil combatentes, de todos os Estados brasileiros, desembarcaram na Itália para fortalecer o 5ª Exército Americano. As idades variavam de 17 a 22 anos. Do total, aproximadamente cinco mil morreram, segundo Silva. “Apesar da formação deficiente que eles receberam aqui, completada pelo exército americano na Itália, eles conseguiram superar as dificuldades e vencer quase todas as batalhas que participaram”, afirma. De médicos a agricultores, às vezes vindo a pé do interior, 645 paraenses se dispuseram a lutar contra os horrores do nazismo. “Como eles estavam acostumados com o calor da Amazônia, o frio foi um dos maiores obstáculos que precisaram superar”, explica o professor.


No filme, 20 dos ex-combatentes do Pará que integraram a Força Expedicionária Brasileira (FEB) deram seu depoimento. “Nós realizamos entrevistas até com senhores que moram em Macapá. Alguns não quiseram falar. Preferem não lembrar o que viram na guerra. Outros, a família não autorizou a dar entrevista porque começam a recordar o que viveram e acabam passando mal”, conta Elton Souza.


O trabalho de resgaste, valorização e memória dos professores irá se tornar um livro, que aguarda apoio para ser publicado. As atividades envolvem alunos do curso de História e também de iniciação científica do Ensino Médio. “Eles não tiveram uma participação irrelevante como muitos ainda acreditam. Um dos motivos que levou ao fim da ditadura de Vargas, por exemplo, foi a pressão que os sobreviventes fizeram. Eles começaram a questionar como é possível lutar por liberdade e igualdade e voltar a morar em uma ditadura. Além disso, o exército brasileiro era o único em que os soldados não eram separados entre brancos e negros. Isso acabou contribuindo para que o exército americano, por exemplo, revisse sua política de segregação nos anos seguintes”, comenta Helton Silva.


Ainda não há previsão para quando o documentário chegará ao grande público, mas os pesquisadores pretendem lançá-lo oficialmente em setembro, próximo ao Dia da Independência. A média de idade dos pracinhas paraenses é de 89 anos. Três dos que deram depoimento na pré-produção do filme faleceram sem poder assisti-lo. “É um material rico que ainda precisa ser muito mais explorado. Eu acredito que este seja o único filme do tipo no Brasil. Eles já ultrapassaram muito a média de idade do brasileiro. Se ninguém fizer nada, vai acabar sendo o único”, completa receoso Elton Souza.


O ÚLTIMO HOMEM


Integrante da 8ª Companhia do 2ª Batalhão da FEB, seu Raimundo Nonato quando tinha 21 embarcou para a maior jornada de sua vida. Reservista, uma semana após ser convocado, o pracinha já estava no Rio de Janeiro esperando para ir à Europa. “Eu era funcionário do Banco do Brasil. Nunca tinha ficado longe de casa e passei sete meses na Itália. O pior era a saudade dos amigos, da família e de tudo que a gente tinha deixado aqui”, conta.


Hoje, seu Raimundo lamenta que poucos reconheçam a participação brasileira na Segunda Guerra e a falta de patriotismo das novas gerações. “Mesmo o Brasil tendo entrado muito depois no conflito, não tendo quase nada a seu favor, nós fomos lá e cumprimos nosso dever. Nós podíamos ser poucos, mas erámos como um time de futebol. Estávamos orgulhosos de representar milhões lutando ali”, comenta.


Apesar da idade avançada, o ex-combatente permanece lúcido e mantém vivas memórias fortes que o tempo não conseguiu desgastar. Mesmo não tendo ido à frente de batalha, o pracinha viu o pior da guerra de muito perto. “A fome era terrível. Pessoas comuns, que não tinham nada a ver com o conflito, morriam por não ter o que comer. Muitas contavam com nossa ajuda. Nós dividíamos a nossa comida com a população”, relembra. Nostálgico, seu Raimundo diz que a maior lição que aprendeu na guerra foi a certeza de que há sempre algo mais para aprender. “A vida é esse contínuo ciclo de aprendizagens. Eu tô aprendendo agora e vou continuar aprendendo até o último dia da minha vida”, reflete.


A Associação dos Ex-combatentes do Pará é uma das últimas do Brasil que permanecem ativas. Mantida com recursos próprios e de colaboradores, a sede, localizada na Avenida José Malcher, próxima à Travessa Três de Maio, já foi alvo de diversos arrombamentos. Entre recortes de jornal, fotos, quadros e lembranças, seu Raimundo Nonato diz que o lugar, nem de longe, dá ideia do espaço que já foi um dia. “Nós tínhamos discussões acaloradas. O lugar vivia cheio, era cheio de vida. Foram três fatores que acabaram afastando os membros: idade, morte e doença”, explica.


Ainda que sozinho, seu Raimundo Nonato, presidente da Associação, faz questão de ir à sede as quintas e terças-feiras para limpar o espaço e garantir que os registros permaneçam preservados. “Quem olha de fora, pode achar que é uma tarefa sem importância, talvez até inútil. Mas eu tenho consciência da brevidade do meu tempo e de que nada do que eu tô fazendo agora visa resultados práticos ou imediatos. O trabalho de manter a Associação e o que ela representa está acima desse plano. O nosso lema sempre foi até o último homem. Talvez eu seja esse último homem, mas vou até o fim”, garante com os olhos marejados.



No livro de presença da Associação, páginas recentes cheias de nomes, como a do último oito de maio, pré-lançamento do documentário, são raríssimas. Em muitos dias, consta apenas um nome: Raimundo Nonato. Após lutar e vencer diversas batalhas contra o tempo, ele ainda assina. 

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Raimundo Nonato: Sobre mim
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